Meu nome é Shirlei Cleide. Lá no meu emprego novo como secretária, eu senti que não ia ganhar nenhuma chance se não mostrasse para eles que eu não era essa garota fútil, burra, "sem referencial, sem cultura", como eles gostam de dizer. Cansei, e embora eu tenha ficado verde de ódio de não ter gasto a grana que estava economizando para ir ao Rodeio Country Bulls naquela noite, eu acompanhei a minha colega Sílvia Helena para uma peça que ela indicou. Eu fiquei com vontade de curtir, afinal de contas, aquela gente toda no teatro... quando eu passava de carro no caminho do shopping e via aquela fila imensa na porta, às vezes eu tinha certa vontade de ser como eles, finos... Além do que tinha cada homem lindo lá na porta - todos gays - mas era bonito de olhar mesmo assim.
Minha primeira decepção foi ver que tinha menos de cinquenta pessoas lá. Achei que estávamos atrasados e aquele povo fosse só os bicões que a minha amiga disse que conseguem entrar sem ingressos quando sobra lugar. Não era. Poucas possibilidades, mas a Sílvia explicou que era diferente, espaço alternativo, não entendi bulhufas. Aí, quando foi para começar, uma mocinha ficou gritando umas coisas do outro lado do saguão e quase ninguém conseguiu ouvir. O povo foi passando o recado um para o outro de que os celulares deveriam ser desligados ali mesmo. Gente, ninguém me falou dessa estória. E se o Renê me liga no meio da peça? Eu não posso atender? Senti que estava para perder coisas importantes com a minha decisão de ser intelectual, mas caminhei em frente. Aí uma loira ainda mais mal educada, completou que não era para conversar pelo caminho. Ninguém me manda calar a boca lá no brete. Quis voar na loira, mas tinha um cartazinho bem colocado na parede advertindo sobre o crime de desacato a funcionário público e as penas correspondentes. Entendi imediatamente o porquê.
Enfim, fomos conhecer todo o teatro por dentro, menos a platéia. Fiquei com a impressão de que estava indo para um bordel com tanto neon roxo pelo caminho, quando cheguei num lugar com banquinhos de igreja - que acabaram com a minha bunda - e umas cabeças flutuando dormindo. Fiquei com medo, achei que ia sonhar com aquilo, quando eles começaram a falar, num espanhol que parecia dublado, tipo novela mexicana do SBT... Eu fui perguntar para meu chefe que língua se fala no Canadá porque ele já viajou para lá. A Sílvia disse que a versão espanhola era para nós do Brasil, porque era mais fácil de entender. Não era para mim, você acha que se eu falasse inglês e espanhol eu ia ficar pastando naquele escritório? Outra coisa que eu estava curiosíssima e não vi lá foi a estória que a Sílvia me contou sobre legendas. No teatro? Não é filme, bem. Sabia que ela estava mentindo. A peça não tinha legenda e eu não entendi nada. Eles falaram que era só quarenta minutos. Para mim, foi um século.
As cabeças ficavam lá paradas. Não iam nem vinham. Uns barulhos, tudo estranho, chato. Muuuito chato. A Sílvia me beliscava e dizia que era para a gente se sentir cegos também. Eu me senti uma retardada mental, bem que eu queria não estar vendo. Para completar, saí de lá sem saber se aquelas cabeças eram de gente mesmo, se eram bonecos, robôs, espelhos. Às vezes não pareciam humanos, às vezes pareciam demais, uns sorrisos distorcidos... Uma coisa de louco. Desisti de ter cultura. Vou ser burra até a morte e me afundar aqui no escritório, nunca mais. Hoje à noite tem rodeio. Adivinha para onde eu vou?
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Assim como se informa a duração de um espetáculo e a ridícula classificação por idade de acordo com o conteúdo, deveríamos pensar numa espécie de classificação com tarjas coloridas conforme o grau de estresse que o espectador vai experimentar conforme certas propostas de encenação que lidam com a busca da singularidade, como por exemplo: exposição a gases fumígenos, acomodação prolongada em posturas nocivas para coluna, necessidade de deslocamento por estruturas íngremes, estreitas ou úmidas, porque, sem querer desmerecer as inúmeras e variadas e criativas propostas, há que se reconhecer que o cidadão menos iniciado que decide ir ao teatro tem a idéia de que se sentará em uma poltrona, objeto com esse fim, e assistirá o trabalho de outrem, não de si mesmo. É boa fé, a platéia da cidade é bastante refinada e generosa e aplaude de pé até sem saber se o ator virá ao palco para receber o aplauso ou não, por pura educação. Por que é que às vezes a gente se sente tão constrangido por estressar essas pessoas que acomodam a platéia nos teatros? Elas dão bronca, cobram atitudes suas como se você já não as tivesse tomado. Ainda virá o tempo em que será obrigatório deixar o celular na portaria, como num presídio, ao se entrar numa sala de espetáculo. As boas carregadeiras sabem que a maquininha adentrará mesmo assim.
ResponderExcluirLogo no início do espetáculo, me vem uma dúvida se na hora em que dei o comando do silencioso ele realmente funcionou. Sinto uma inquietação para checar e evitar que um descuido perturbe a platéia com um inadvertido toque da nokia. Não é possível, o espetáculo também tem projeto meticuloso de luz. Começo a suar frio e não consigo escutar a peça. Somente o pânico toma conta de mim. Trago o celular para junto da minha mão para que possa desligar caso alguém me ligue. Ninguém nunca me liga, mas meu coração palpita de pavor, e também não é possível sair para ir ao banheiro. E se eu fosse diabético, incontinente, cadeirante ou tivesse um tic nervoso incontrolável? Meu Deus! O que aconteceria? Enfim, o teatro mexe com a gente de qualquer forma. Obrigado por nos lerem.
BIXA, ñ VIAJA!!!
ResponderExcluirMexe, mexe, mexe. A arte de mexer vem desde os tempos da Pedra Lascada. Todo mundo mexia, todo mundo sacudia e dançava.
ResponderExcluirNão vi ao espetáculo a que se refere o post (ainda bem, tô crendo nisso já), mas não podemos desmerecer a tentativa de busca por uma singularidade.
ResponderExcluirO teatro, em sua constante busca por múltiplas identidade, se vê hoje desafiado a dialogar com um mundo tecnológico, veloz, frio, individualista e convergente. E muito do que se passou por esse FIT meio que revelava isso, mesmo que de forma não intencional.
No entanto, continuo achando que o simples é o mais singular, o mais autêntico, o mais belo. E os 'simples' desta edição do festival deixaram sua marca de singularidade gravada na minha e na mente de muitas outras pessoas.
O efeito, a alegoria, o truque, sim, são coisas que dão força a um espetáculo, mas nada será capaz de superar a magia do gesto-palavra-emoção feito com dedicação e talento.
E meus beijos pro Rô (Hilbert)... Vc é mais lindo pessoalmente... rs